Santiago do Chile no verão

É sempre bom voltar a Santiago do Chile, pois a cidade se renova a cada visita. Há sempre um canto novo para conhecer, um museu diferente, novas exposições, e é diferente visitar um país em cada estação. A primeira vez que fomos a Santiago foi em 1986, há mais de trinta anos. Era inverno e Pinochet estava no poder. A cidade tinha toque de recolher às dez da noite e, na primeira noite, por desconhecermos isso, mal conseguimos comer alguma coisa, antes de voltar correndo ao hotel. Estávamos hospedados no luxuoso Carrera,que não mais existe, bem próximo ao Palácio Presidencial, o La Moneda, e sempre que passávamos por ali avistávamos a guarda do palácio com seu imponente uniforme de inverno, suas botas reluzentes e passos bem marcados, além das caras fechadas, que em tudo se assemelhava a um exército nazista.

 

Várias vezes voltamos ao Chile e a Santiago, evidentemente. A última foi agora no verão de janeiro, quando a cidade estava um calor de mais de trinta graus, o que para os chilenos é muito. Era apenas uma noite e um dia antes de regressarmos, após a viagem de travessia do Rio de Janeiro a Valparaíso. Gosto de ficar no centro histórico, embora os melhores hotéis estejam sempre nos bairros mais afastados. Para dormir uma noite, não importa tanto o hotel, basta que seja limpo e tranquilo e, dessa vez, pegamos um apart-hotel, pelo preço. Não foi uma boa experiência. Esse negócio de ter de fazer café, ao acordar, ninguém para arrumar o quarto, só é bom quando se vai ficar mais tempo e se viaja com mais pessoas, para economizar. Confesso que ainda prefiro o velho e bom hotel turístico, com portaria e um cafezinho da manhã. Valeu como experiência.

Caminhar pela Huérfanos é tudo de bom. Há de tudo, lojas para todos os gostos e os sensacionais artistas de rua, com suas performances, estátuas vivas e cantorias. Dessa vez, pegamos um grupo de jovens artistas líricos, em férias, cantando árias famosas de óperas, bem em frente ao nosso hotel. Era uma delícia sentar num dos bancos do passeio, tomar um sorvete e ouvir aquelas vozes celestiais. Pena que não dava para saborear um vinho por ali mesmo, mas havia as cerejas, era tempo delas, e só não gosta de cerejas quem não conhece seu sabor.

Ali perto, havia a Catedral, que sempre visito, para admirar e rezar; o museu histórico, sempre com alguma novidade e, dessa vez, visitamos o Centro Cultural atrás do Palácio La Moneda. Moderníssimo, interativo, estava cheio de crianças em férias. Que bom um país que valoriza a cultura de diferentes maneiras e educa sua juventude com boas práticas. A educação chilena é a melhor da América Latina e é uma sociedade leitora. Na Calle Huérfanos mesmo, vi um shopping só de livrarias, fato impensável em nosso país, pátria deseducadora. Não sei se a internet está mudando os hábitos de leitura da juventude por lá tão fortemente como aqui. Pode ser que sim, pois o fenômeno é mundial. Lá como aqui todos estão grudados nas redes sociais o tempo todo e os livros de papel estão condenados a uma confraria de bibliófilos, como a dos amantes dos discos de vinil.

Gibraltar, enclave britânico na Espanha

 

Gibraltar é uma pequena península no sul da Península Ibérica, com uma superfície de 6,5 km quadrados; tem uma estreita fronteira terrestre com  Espanha e está situada entre o  Mar Mediterrâneo, o  Estreito de Gibraltar e a  baía de Algeciras, com 12 km de linha de costa. O seu aspeto é de um rochedo com 426 m de altitude e o seu clima é mediterrânico, com invernos suaves e verões quentes. Embora tenha sido ocupada por uma força anglo-holandesa em 1704, a Espanha ainda mantém a reivindicação sobre o Rochedo, o que é totalmente rejeitado pela população gibraltina, cerca de trinta mil habitantes, súditos da Rainha Elizabeth II.

O nome Gibraltar origina-se na expressão árabe jabal al-Tariq  que significa “montanha do Tárique”. A montanha, um promontório militarmente estratégico na entrada do mar Mediterrâneo, guarnece o estreito oceânico que separa a África do continente europeu. O nome é uma homenagem ao general muçulmano Tárique que, no ano de 711 d.C. aí desembarcou, iniciando a conquista do reino visigótico. Antes foi chamado pelos  fenícios de Calpe, uma das Colunas de Hércules. Popularmente, Gibraltar é chamada de “Gib” ou “The Rock” (o Rochedo).

Por sua importância estratégica, já pertenceu acartagineses, romanos, vândalos, muçulmanos e espanhóis. Em 1462, os espanhóis expulsaram os muçulmanos num episódio de reconquista territorial. Atualmente, o brasão e a bandeira evocam o antigo reino de Castela. Uma força anglo-neerlandesa liderada por Sir George Rooke apoderou-se de Gibraltar em 1704. O território foi cedido à Grã-Bretanha pela Espanha no Tratado de Utrecht, em  1713, como parte do pagamento da Guerra da Sucessão Espanhola. Nesse tratado, a Espanha cedeu à Inglaterra “a total propriedade da cidade e castelo de Gibraltar, junto com o porto, fortificações e fortes (…) para sempre, sem qualquer exceção ou impedimento.”Apesar de tudo, o tratado de cessão estipulava que nenhum comércio por terra entre Gibraltar e a Espanha deve ocorrer, exceto para provisões em caso de emergência, se Gibraltar não conseguir ser abastecida por mar. Uma condição especial nesse tratado é que “nenhuma permissão deve ser dada sob qualquer pretexto, tanto a judeus quanto a mouros, para morarem ou terem residência na dita cidade de Gibraltar”. Esta restrição foi rapidamente ignorada, e por muitos anos tanto judeus quanto árabes moraram pacificamente em Gibraltar. Numa cláusula de reversão, se a coroa britânica quiser abandonar Gibraltar, deve oferecê-la primeiro à Espanha.

Nos tempos de Franco, as fronteiras do “rochedo” estiveram encerradas, dificultando a vida aos seus 30 mil habitantes. A passagem de pessoas e bens voltou a ser possível em 1985.Num  referendo de 1967, a população de Gibraltar ignorou a pressão espanhola e votou maciçamente por permanecer sob dependência britânica. Em 2002, 99% dos votantes rejeitaram qualquer proposta de partilha de soberania entre o Reino Unido e a Espanha. No entanto, os gibraltinos têm buscado um status mais avançado e um relacionamento com o Reino Unido que reflita o presente nível de autogoverno. Uma nova constituição para o território foi submetida a aprovação.

Uma vez que Gibraltar não possui recursos agrícolas nem minerais, os seus habitantes ganham a vida graças ao porto, às docas e às bases da OTAN. As principais atividades econômicas são as reparações navais, o abastecimento aos navios, as indústrias alimentares e de bebidas, o turismo, o comércio e os serviços de reexportação. Embora a presença naval britânica em Gibraltar tenha diminuído muito desde o seu auge, antes da Segunda Guerra Mundial, o estreito de Gibraltar é uma das mais frequentadas vias marítimas do Mundo, com a passagem de um navio a cada seis minutos. Sobretudo no verão a pequena Gibraltar fica cheia de navios de cruzeiro e de turistas do mundo em busca de suas atrações, que não são muitas e podem ser vistas todas em um dia. Primeiro, os macacos de Gibraltar, famosos no mundo todo, pois são os únicos monos livres da Europa, uma população de 250 protegida e alimentada pelo governo. São macacos africanos, que atravessaram o estreito em algum momento da história e não mais regressaram. Os machos têm o saco escrotal azul, iguais aos que vi no Zimbabwe e na Tanzânia, mas diferentes deles, não têm rabos. A evolução fê-los perder o rabo, talvez pela inexistência de grandes árvores naquele rochedo. Mais uma vez, Darwin estava certo. Depois dos macacos, as atrações principais são: a Ponta Europa, um mirante, de onde se pode ver as costas do Marrocos, do outro lado do estreito; a caverna de São Miguel, de origem neolítica, hoje usada como sala de concerto; o túnel  Siegel, Impressionante construção feita na rocha por  soldados, como estratégia militar; o jardim botânico, o teleférico, que vai da rua principal ao alto do rochedo e até a observação de baleias e golfinhos na baía, se for de sorte. Muitos turistas, no entanto, nem visitam essas atrações. O que querem mesmo é percorrer as lojas com artigos sem impostos para levar lembranças para casa. Comprei alguns perfumes e realmente eram bem mais baratos do que nas lojas do aeroporto. E torcer para pegar um bom tempo, pois pegamos uma chuvinha fria, bem diferente do calorão que estava em Cartagena, no dia anterior.

Patagônia revisitada

Visitamos a Patagônia, fazendo a travessia do estreito de Magalhães e o Canal de Beagle, pela primeira vez, em janeiro de 2006. Era um velho e pequeno navio da Princess, o Regal, que entrava pelos fiordes e parava bem perto das geleiras. Nosso quarto era o penúltimo, bem perto de uma jacuzzi ao ar livre que só era ocupada por alguns russos nossos vizinhos, os únicos que ousavam sair sem roupa naquela temperatura. Foi um passeio lindo! O sol estava radiante, naqueles dias, o mar calmo e fizemos uma travessia inesquecível. Nunca vou esquecer a visão do Cabo Horn e a entrada no Atlântico, após um dia inteiro de travessia. Por esse motivo, resolvemos, dez anos depois, fazer o mesmo roteiro, pelo caminho inverso, agora saindo do Rio de Janeiro e terminando em Santiago. A viagem já começou complicada no embarque. O porto do Rio estava em obras e levamos uma eternidade para chegar perto com as malas, mesmo vindos do aeroporto Santos Dumont. Ao chegarmos, o caos total. Havia oito navios embarcando simultaneamente, pois era a primeira segunda-feira após o réveillon, onde vários barcos estiveram para o espetáculo de fogos. Com calma e jeitinho, conseguimos embarcar com umas duas horas de espera. Teve gente que levou oito. Com isso, oi navio só saiu com algumas horas de atraso, logo recuperados na travessia até Buenos Aires. Até aí,m tudo bem. Tempo bom, mar de almirante, Buenos Aires é sempre uma festa para brasileiros, apesar de pequenas rusgas com taxistas, sempre querendo levar vantagens sobre turistas como em (quase) todas as partes do mundo.

Ao sairmos de Buenos Aires, o bicho começou a pegar. O tempo virou, o mar ficou agitado, vento de 120 km/h, ondas de seis a oito metros. A próxima parada deveria ser nas ilhas Falklands, Malvinas para os hermanos, mas não deu. O navio não pôde atracar e um passageiro teve de ser retirado de helicóptero, por problemas de saúde, numa operação arriscada. O comandante dava avisos frequentes aos passageiros, mesmo na madrugada, e isso causou um clima de certo pânico aos passageiros. Havia muitos brasileiros a bordo, alguns navegantes de primeira viagem. Alguns poucos chegaram a se vestir com os coletes salva-vidas e não os tiravam nem para o café da manhã. O comandante passou pelo Cabo Horn, nevava e fazia muito frio, um vento que impedia de sair para tirar as fotos tão sonhadas e depois seguiu para Ushuaia, onde não tivemos permissão para desembarcar. Chegamos, vimos do mar a bela cidade do fim do mundo com suas casinhas coloridas, tiramos fotos, demos adeus e seguimos viagem. Uma decepção para todos que não a tinham visitado de outra vez, como nós. Daí pra frente foram dois dias de pura maravilha. Para compensar a frustração, o navio percorria cada canto do Canal do Beagle, mostrando a beleza de suas geleiras, céu e mar em harmonia. Isso até chegarmos a Punta Arenas, já no Chile. Embora estivesse ventando muito e o mar não estivesse favorável, o navio conseguiu atracar. Passageiros e tripulantes desceram em peso. Mais de três mil foram a terra, pois já estávamos há uma semana a bordo, desde Buenos Aires, sem pôr os pés no chão. Eu e minha esposa não tivemos pressa. Já tínhamos visitado Punta Arenas antes e agora era só conferir o que mudou. Quando descemos, nossa lancha teve dificuldade para atracar; algumas pessoas se aborreceram com o pobre piloto, chamando-o de barbeiro, sem prever o que viria depois. Saltamos, pegamos um city-tour local, com alguns brasileiros que conhecemos ali, fomos ao cemitério e visitamos a mais famosa sepultura que existe ali, embora não seja a mais grandiosa. É a do índio desconhecido, uma homenagem dos nativos da região aos seus antigos antepassados. É lugar de peregrinação dos nativos, que veneram esse índio como uma divindade. Alguma coisa parecida com os nossos cultos umbandistas. Voltamos para o centro da cidade, fizemos algumas comprinhas. O vinho ali era muito barato, pois é zona livre de impostos, mas, infelizmente, só se podia levar duas garrafas a bordo, uma por passageiro. Vi vinhos de quase cem reais aqui, a cinco dólares lá. Que pena! Eram duas horas apenas, mas disse para Teca: Vamos voltar, pois esse tempo pode virar. Já tinha virado. Havia uma fila enorme e só conseguimos embarcar mais de uma hora depois. Foi a última lancha permitida. A partir daí, a marinha chilena impediu o embarque e cerca de duas mil pessoas ficaram em terra, sem poder voltar. Aí foi uma agonia tanto para os que ficaram quanto para os que estavam a bordo, pois o comandante avisa o tempo todo o que estava tentando fazer para socorrer o povo e trazê-los a bordo. Havia velhos e crianças, pessoas com dificuldade de locomoção e os que necessitavam de medicamentos. De quatro da tarde às dez da noite, foi um sofrimento generalizado. Somente a partir das dez da noite, quando o vento amainou, foi permitido iniciar o retorno dos passageiros para o navio, operação que levou às quatro horas. Somente às duas da manhã, com todos a bordo, pudemos prosseguir a viagem até Valparaíso, aonde chegamos dois dias depois. Depois de tanto contratempo e para evitar um motim a bordo, no dia seguinte, todos receberam uma cartinha do comandante pedindo desculpas pelos inconvenientes, devolvendo o dinheiro das taxas pagas pelos portos onde não desembarcamos e dando a cada passageiro um crédito no valor do que pagamos pelo cruzeiro, sem as taxa, para utilizar em próximos cruzeiros da companhia. Medida justa e acertada para um cruzeiro nada tranquilo e favorável para quem sonhou com uma prazerosa viagem de férias.

Colônia do Sacramento

A primeira vez que fui ao Uruguai foi por terra. Fui a um congresso em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e de lá estiquei até a fronteira, atravessei-a a pé até Rivera e comprei uma passagem até Montevidéu. Fiquei lá uma noite e depois voltei de ônibus para Porto Alegre.  Depois, fiz um cruzeiro até Buenos Aires, que parou um dia em Montevidéu. Tentei ir a Colônia, mas o tempo era pouco. Agora deu. Fizemos um cruzeiro do Rio de Janeiro até Santiago, que previa parada de dois dias em Buenos Aires. Como essa já é cidade bem conhecida, resolvemos ir a Colônia, no Uruguai, que dista apenas uma hora de barco rápido desde Buenos Aires, num bate e volta. A passagem pode ser comprada pela internet, no site da buquebus e a estação está entre o terminal de cruzeiros e o Porto Madero, tudo muito fácil.

Sempre quis ir a Colônia do Sacramento, cujo centro histórico é reconhecido pela Unesco como patrimônio da humanidade. Colônia foi fundada por Manuel Lobo, Governador da Capitania Real do Rio de Janeiro, em 1680,do outro lado do Rio da Prata, bem próximo de onde os espanhóis tinham fundado Buenos Aires, por interesse político, econômico e comercial. Isso gerou uma disputa e muitas guerras entre portugueses e espanhois por cento e cinquenta  anos, pois aquele território, conforme o Tratado de Tordesilhas, pertencia à Espanha.Em 1750, pelo Tratado de Madri, Portugal deveria entregar Colônia e receber os Sete Povos das Missões. Mais guerra e dessa vez os maiores perdedores foram os índios guaranis. Em 1777, o Tratado de Santo Ildefonso confirma essa troca, mas a disputa continua até 1822, quando o Brasil se torna independente e anexa aquela região, a Província Cisplatina. Aí vem a guerra da Independência do Uruguai, o Brasil perde e Colônia se torna definitivamente uruguaia, em 1828.

Toda essa história pode ser vista em um vídeo mostrado logo na saída do terminal dos barcos, num Centro de Memória muito bem montado, antes de começar a percorrer o centro histórico, pois não há muito o que ver. O centro é pequeno, há a entrada da antiga fortaleza, algumas ruínas, o farol, uma igreja, ruas calçadas com pedra sabão, como em Parati, mas não esperem uma Parati ou Ouro Preto, cidades históricas muito maiores e mais bem conservadas. Colônia, na verdade, era pequena e cresceu dentro de muralhas. Foram muitas guerras, muitas disputas e pouca coisa sobrou. No entanto, o lugar tem uma importância histórica muito grande e é muito visitada por turistas do mundo todo. É um lugar agradável para passear, há bons restaurantes onde se pode apreciar uma parrilada uruguaia, tomar a cerveja local, recomendo a “Patrícia”, apreciar o pôr do sol no Rio da Prata e voltar para Buenos Aires. Hoje, a cidade é muito visitada pelos jovens alternativos, afinal o Uruguai liberou a maconha e eles fazem seus artesanatos, vendem alguns e passam a vida no dolce far niente bafejado pelos fumos sagrados dos rastafáris. Também é lugar para degustar bons vinhos uruguaios, feitos pela uva Tannat e que, dizem, trazem bons efeitos ao coração. Enfim, é uma boa opção para quem gosta de conhecer lugares diferentes e aprecia a história. Não recomento para os que apreciam modernidades e shopping, pois não vão achar nada disso lá. Felizmente.

Istambul, cidade dividida

Istambul, a antiga Constantinopla e Bizâncio, é uma das cidades mais interessantes do mundo, pois situa-se entre  dois mundos, oriente e ocidente, dois continentes,Europa e Ásia, duas religiões, cristianismo e islamismo e várias outras dualidades que se queira achar. Para mim, é uma das cidades mais lindas do mundo e a travessia do estreito do Bósforo, que já fiz algumas vezes, um dos maiores espetáculos da terra. Alguns acham voar a Capadócia sobre balões. Como sou amante do mar, sempre vou admirar as paisagens, quando do mar se podem ver as maravilhas humanas integradas com as belezas naturais.

Já fui algumas vezes a Istambul, desde 1994, quando lá estive pela primeira vez. E a cidade mudou muito, de lá para cá. Ficou mais ocidental, mais europeia, mais ‘civilizada’, para os nossos padrões. Hoje, ninguém mais usa as roupas turcas tradicionais, exceto nos shows folclóricos, a juventude fala inglês, como no mundo todo, a comida está mais parecida com a que se come nas grandes cidades turísticas, há metrôs, ônibus turísticos que percorrem os principais pontos de interesse e a cidade perdeu um pouco do encanto que tinha no passado, por seu exotismo. Senti o mesmo no Marrocos, quando retornei ao país, décadas depois.

Em 2015, voltei a Istambul e a cidade estava irreconhecível. Com a guerra da Síria, milhares de imigrantes ocuparam a cidade, vivendo nas suas praças, banhando-se em suas fontes, pedindo esmola nas ruas e sinais. São mulheres famintas com os filhos a tiracolo implorando ajuda para se alimentar. A cidade ficou perigosa para o turista, pois, como está sempre repleta de gente, há sempre um risco de um batedor de carteira surrupiar uma bolsa de alguém desprevenido deslumbrado com as mesquitas e os antigos palácios dos sultões

. Caminhei, como sempre gosto de fazer quando vou lá, da praça Taksim, o ponto nevrálgico da cidade, onde milhares de pessoas circulam diariamente, percorrendo toda a rua comercial antigamente percorrida pelo bonde e que vai dar à torre de Gálata. O comércio ali é impressionante. A Turquia é um dos maiores produtores de confecções do mundo, pois tem matéria-prima abundante e mão de obra barata; por isso, tudo ali pode ser comprado a um preço bem acessível. Deve-se fugir das lojas do grande Bazar, pois são as mais caras. Atravessa-se a ponte de Gálata com seus inúmeros pescadores e pode-se até comer um peixinho frito pescado ali mesmo, mas a cerveja é cara. Alcoolismo nunca é bem-vindo em países muçulmanos, mesmo para turistas. Logo após a ponte, chega-se ao mercado egípcio, o milenar mercado das especiarias, que foram o centro da ambição dos ocidentais e criaram o império português, que moveu mundos e fundos em sua busca.

Para mim, Istambul perdeu um pouco de sua magia, pois, diante da grandiosidade da Mesquita Azul, da Santa Sofia, do palácio Topkapi, não sabemos se fotografamos, posamos, admiramos ou nos preocupemos com as mãos estendidas pedindo uma esmola por amor de Alah. E o pior: Istambul virou pontaria para os radicais do Exército Islâmico, pela ajuda que a Turquia tem dado aos que os combatem na Síria e no Iraque e também pelos radicais curdos, que lutam por um país independente. Estive lá há um ano, em agosto de 2015, e comentei com minha esposa ter um pressentimento de que Istambul seria atacada em breve. De lá para cá, foram cinco ataques, o último há pouco no aeroporto, com centenas de mortos e feridos. Uma lástima! A bela Istambul não merecia isso.

Azerbaijão, onde a Europa termina

Pois é. Sempre pensei que a Europa terminasse em Istambul, mas estenderam a fronteira até o Azerbaijão, nela incluindo os três países do Cáucaso, Geórgia, Armênia e Azerbaijão, que visitamos em junho de 2015. E o mais complicado de ir é o Azerbaijão, mas vale a pena. O primeiro obstáculo a vencer é o visto. Enquanto a Geórgia não o exige, e o da Armênia pode ser tirado no Brasil, sem problema, o do Azerbaijão dá um trabalho… É preciso que alguém de lá nos convide: geralmente, uma agência de viagem, que faz isso cobrando, evidentemente. Depois, a taxa, fotos, documentos etc. Fica bem caro e demorado. O visto chegou para nós, já na Armênia, às vésperas de embarcar. Pensamos que estava tudo tranquilo e favorável. Que nada! Ao chegarmos a Baku, de um voo vindo de Tblisi, a entrada foi um perrengue, pois tínhamos visto da Armênia no passaporte. Como eles estão em guerra, ficamos uma meia-hora entre idas e vindas de homens mal-encarados, cópias de passaporte, telefonemas, até que nos liberaram a entrada. E éramos um grupo de doze portugueses e dois brasileiros, todos sexagenários pra riba. Ninguém com cara de terrorista ou de armênio, penso. Ou todos. Vai saber.

A surpresa começa no aeroporto, um dos mais modernos do mundo. Lembrou-me o de Dubai. E o Azerbaijão é, mais ou menos, isto: um Emirado Árabe agora europeu. Desde que se libertaram da URSS, após uma guerra sangrenta contra os russos, no início dos anos noventa, estão nadando em dinheiro do petróleo. E estão transformando um país antes atrasado da Ásia, num moderno país quase europeu. Baku está cheia de prédios modernos, shoppings de arquitetura arrojada, estádios, hotéis e uma juventude sequiosa de consumo e de novidades como toda do mundo. Embora o país seja muçulmano, não é radical. Poucas mulheres usam véu, shador ou burka, só as mais velhas e do interior. A maioria usa roupas ocidentais, fuma e dirige como as ocidentais.

Chegamos em plenos jogos olímpicos europeus e a cidade estava fervilhando de atletas, já nos últimos dias de competição. Pudemos assistir, pela tevê, à cerimônia de encerramento dos jogos, uma festa em que eles procuravam mostrar suas tradições e sua inserção na modernidade. Por causa da festa, tivemos alguns problemas no último dia, em Baku, quando resolvemos ficar sozinhos, no centro da cidade, após visita a um sítio pré-histórico na fronteira do Irã e tivemos dificuldade para voltar para o hotel. Trânsito impedido, metrô fechado, ausência de táxis. Com dificuldade, conseguimos um táxi, mas o motorista nada entendia de inglês e havia vários hotéis com o mesmo nome do nosso, Quafkas. Custou a acertar o que queríamos. Provavelmente, de propósito, como sói acontecer com os taxistas no mundo todo.

Diferente dos guias anteriores, o do Azerbaijão era um jovem, estudante universitário de letras espanholas. Inexperiente, fez o que pôde, mas como ia à balada, chegava cansado e mal dormido das noitadas. Afinal, a cidade estava cheia de gatas e ele era louco pelas nórdicas. Ainda não tinha pegado nenhuma; não sei se conseguiu no último dia. Pelo menos, foi o que me disse. Nossa primeira visita em Baku foi ao Memorial aos mortos da guerra contra os russos. Assistimos à troca da guarda e de lá se tem uma vista ampla da bela Baku. Depois, visitamos a fortaleza medieval da velha cidade, tombada como Patrimônio Mundial pela Unesco. Fizemos um pequeno cruzeiro pelo mar Cáspio, de onde se tem uma bela vista da cidade, almoçamos num restaurante típico da cidade medieval e à tarde fomos visitar  a península Absheron, com seus fogos eternos e lugar de adoração dos cultuadores de Zoroastro. A Montanha de Fogo é outro lugar classificado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, por ser única no mundo. No outro dia, visitamos Gobustan, um sítio arqueológico precioso, moderníssimo, onde se pode ver grande parte da história da região e da humanidade, também local tombado pela Unesco.

Armênia, país milenar

A Armênia é um país muito antigo, cuja história se perde nas brumas do tempo. Eles se dizem descendentes de Jafé, filho de Noé, que, de acordo com a tradição e a história bíblica, ancorou sua arca, após o Dilúvio, sobre o Monte Ararat. Antigamente, esse monte estava no centro da Armênia, pois o país se formou em torno dele. Hoje, pertence à Turquia, o maior inimigo da Armênia e hoje detentora da maior parte de seu antigo território. Os armênios celebraram, no ano passado, o centenário do grande genocídio de seu povo, ocorrido durante a primeira guerra mundial, em 1915. Os turcos não concordam com essa palavra. Dizem que foi uma guerra normal com perdas de ambos os lados. A verdade é que mais de um milhão de armênios foram exterminados, dentre homens, mulheres e crianças. Os turcos só perderam alguns soldados em combate. Uma visita ao museu do genocídio, em Yerevan, é importante para conhecer essa história terrível e que pode ter servido de inspiração aos nazistas para exterminar os judeus, na segunda grande guerra. Armênios e judeus são muito parecidos em suas convicções religiosas e têm uma história comum de luta e de união de seu povo em torno de crenças religiosas. Foram os armênios o primeiro povo a se converter ao cristianismo e, em Echiamiadzin, a sede episcopal do país, encontra-se a primeira igreja cristã do mundo, patrimônio tombado pela Unesco.

Saímos da Geórgia pela fronteira de Sadakhlo e lá trocamos de guia e de ônibus. A simpática guia georgiana deu lugar à jovem e refinada guia armênia. Como é bom ter guia nativo para se conhecer um novo país! Vamos aprendendo a história do país e de seu povo, coisas que nunca aprendemos na escola ou nunca saberíamos, se não tivéssemos um guia para orientar. Guias e motoristas são encarnações de brâmanes, nos dizem os sábios indianos, e é verdade. Entramos na Armênia pelo vale do rio Debed e perto da fronteira já fomo visitar os mosteiros de Sanshin e Haghpat, patrimônios da Unesco. Ali almoçamos a deliciosa comida armênia, que lembra a de todo oriente médio, à base de berinjelas, azeite, grão de bico, azeitonas, carne de frango ou de carneiro. Continuamos a viagem até Yerevan pelas montanhas da Armênia, carneiros pastando e picos nevados. Uma paisagem inesquecível! Passamos por comunidades rurais antiquíssimas até chegarmos a Yerevan, a moderna capital do país. Antes de chegarmos lá, fizemos uma parada no monumento ao alfabeto armênio. Eles têm muito orgulho de sua língua, única no mundo, e de sua literatura. A primeira visita que fizemos, na capital, foi ao museu dos manuscritos antigos Matenadaram, onde se conservam mais de 17 mil manuscritos, a maior coleção do mundo, um tesouro da Armênia e da história da humanidade.

À tarde, fomos até Khor Virap, de onde se avista, no lado turco da fronteira, o monte Ararat, que, na verdade, são dois, um maior e outro menor. Lindo panorama! Depois, fomos a Artasaat, antiga capital da Armênia, onde visitamos o poço onde esteve prisioneiro S. Jorge, o iluminador, um dos santos cristãos do país. Depois, visitamos Vagharsapat, Ecchmiadzin e o museu dos tesouros religiosos armênios, Apesar de anos de domínio soviético e do massacre dos muçulmanos armênios, é muito forte o cristianismo armênio, que é único, pois a igreja armênia na está ligada à romana, nem à grega ou à russa. O país tem inúmeros mosteiros da era medieval, a maioria tombada pela Unesco, e visitamos alguns comol o Geghard, uma joia, onde assistimos a um concerto de música armênia medieval. O povo armênio é muito musical, e dentre seus descendentes espalhados pelo mundo há músicos famosos, tanto clássicos quanto populares como a Cher. Como estávamos no verão, a grande atração de Yerevan era sair de casa para ouvir as músicas tocadas na fonte musical e suas luzes coloridas na praça em frente ao museu Histórico Nacional. Lá, tivemos outra aula sobre a história e a cultura desse país milenar. Nosso último dia na Armênia foi uma visita ao lago Sevan, a 2.000 metros de altitude, onde visitamos o cemitério Noratus com seus 900 jachkárs, cruzes de pedra e o mosteiro de Sevanavank. Nossa última noite na Armênia foi na cidade termal de Dilijan, no Parque Nacional do mesmo nome. Jantamos num hotel das montanhas e à noite tivemos a surpresa de um concerto de piano de um célebre músico local, que estava no hotel. Saímos bem cedo em direção à fronteira da Geórgia, levando de lanche o que eles costumam comer no café da manhã: pepino, tomate, ovo cozido, café gelado e iogurte. Tirando o café gelado, o resto foi devorado durante a viagem até Tblisi, a capital da Geórgia, onde embarcaríamos para Baku, no Azerbaijão. Como Armênia e Azerbaijão são inimigos, desde a guerra pela disputa de Nagorno-Karabah, eles não têm relações diplomáticas. Por isso, tivemos de voltar à Geórgia, para embarcarmos para o Azerbaijão. Foram cinco dias intensos na Armênia, um mergulho na cultura daquele país tão antigo e saímos conhecendo bastante de um povo que resiste à destruição há tantos anos e contra tantos inimigos. Como os judeus, mas sem o apoio dos Estados Unidos.