De Axum a Lalibela, na Etiópia

Pouco sabemos da história da ÁFRICA. Nossa informação é toda eurocêntrica e, tirando o Egito, não se estuda, na escola brasileira, a história dos povos e das etnias africanas que constituem grande parte da formação do povo brasileiro, já que Portugal manteve colônias lá por mais de 400 anos e de lá abastecia o continente americano com mão de obra escrava. Comecei a estudar sobre o reino de Axum, depois que li um livro sobre a rota das especiarias. Lá seria o suposto reino de Prestes João, que os portugueses buscavam no oriente, um reino cristão e que lhes daria suporte em suas conquistas, se encontrado fosse. O reino de Axum existiu por mais de mil anos e foi muito importante, pois controlava do planalto norte da Etiópia, com seus vales, lagos e terras férteis, ao estreito do mar Vermelho, que separava a península arábica da África até as terras do atual Yêmen. As ruínas de palácios, estelas funerárias ainda levantadas, tumbas milenares como as dos faraós podem ser visitadas na atual Axum, pequena cidade próxima à fronteira da Eritreia. Naquela região não se fala o amárico, mas o tigril, língua que se assemelha, foneticamente, ao árabe. Em Axum, há o templo de Santa Maria do Ziom que, segundo a tradição, guarda a arca da Aliança, levada de Jerusalém por Menelik, o filho da rainha de Sabá com Salomão. Vigiada por um único guardião até a morte, o “prisioneiro sagrado”, ninguém a pode ver, só o lugar onde está. À noite, quando a brisa refresca aquela região desértica, a população de Axum sai às ruas, para beber cerveja e comer carne, como aqui. Só que o boi fica morto, dependurado à frente das pessoas, que escolhem a carne de sua preferência, a pesam e assam nos braseiros postos à sua frente. No outro dia, pela manhã, passei pelo local, e vi o que sobrou do boi, sem qualquer refrigeração, para ser comido à noite por outros comensais, ou pelos mesmos. Bom apetite!

De lá, fui pra Lalibela, a última cidade que iria visitar na Etiópia. Lalibela foi a segunda capital, após Axum, é famosa por seus templos construídos nas rochas,sobre altas montanhas, durante a idade Média, em torno do século XII. Era a época das guerras contra os muçulmanos e os reis cristãos etíopes construíram Lalibela como uma cidade sagrada para os cristãos que não mais poderiam visitar Jerusalém, tomada pelos turcos otomanos. Lalibela possui onze igrejas construídas sobre pedras, impressionantes obras de engenharia e de arquitetura, todas decoradas com afrescos, murais e repletas de tesouros acumulados em séculos de existência. Patrimônio da Humanidade, tombada pela UNESCO como uma das maravilhas da humanidade, Lalibela é visitada por turistas europeus, sobretudo alemães, que admiram as obras artísticas ao redor do mundo. Encontrei-os às centenas por lá, eu, o único brasileiro, povo não muito dado a visitas culturais. Estão todos shopeando em Miami ou chopeando nas praias do Nordeste.

O problema é que, na primeira igreja em que entrei, pisei num buraco, oculto sob um tapete e quebrei o pé esquerdo. Ouvi um estalo, senti uma dor muito forte, tive vômito e sensação de desmaio. Nunca havia quebrado nada antes, mas senti, claramente, que aquela tinha sido a primeira vez. No programa daquele dia, teria de visitar mais cinco igrejas e o fiz, mesmo sob intensa dor. Só após a visita, fui a um hospital público, o único aberto, pois era domingo. Fui bem atendido pelos jovens paramédicos etíopes, mas o obsoleto aparelho de raios-x não detectou a fratura. Só quatro dias depois, chegaria ao Brasil. Imagine a viagem de volta, 22 horas de voo e esperas em aeroporto. Sobrevivi para contar. Mas, valeu a pena. Espero, um dia, voltar à Etiópia e visitar os povos do vale do Omo, dentre outros.

Etiópia, berço da humanidade

Há pouco tempo, li o livro “Luzes da África”, de Haroldo Castro, que faz uma viagem com o filho da África do Sul ao Sudão, buscando mostrar o que a África tem de belo, interessante e importante para a humanidade. Fiquei impressionado com o parágrafo “Segundo os parâmetros do Banco Mundial, estou em um dos países mais pobres do mundo. Mas, se os indicadores artísticos e espirituais pudessem ser computados, a Etiópia seria considerada uma das nações mais ricas do planeta” (p.377). Foi  com essa referência na cabeça que fui para a Etiópia, uma viagem que só iria confirmar o que tinha lido, ainda que só tivesse conhecido a parte norte do país. Em primeiro lugar, a Etiópia é o berço da humanidade, pois ali foi o “Jardim do Éden”, segundo a Bíblia, o que tem sido confirmado pelos arqueólogos com a descoberta dos mais antigos hominídeos, dentre os quais a famosa Lucy, que podem ser visitados no Museu Arqueológico Nacional, em Addis Abeba.

Após uma pequena parada na capital, uma moderna cidade com uma cara árabe-africana e um clima belo-horizontino, fui para Bahir Dar, cidade turística às margens do lago Tana. De lá, pode-se atravessar o lago para visitar alguns dos mosteiros centenários à sua margem e, enquanto se navega em pequenas e seguras embarcações, vai-se encontrando, pelo caminho, pequenos barcos de junco com coletores de madeira que a comercializam na cidade. São barcos muito parecidos com os que vi no Titicaca, há muitos anos. Só não faz tanto frio, pois a altitude é menor, pouco menos de 2.000m. Desde o avião, pode-se ver como a Etiópia possui altas montanhas, algumas chegando a 4.500m como a Dashen, que também é nome de uma boa cerveja de lá, vales profundos, lagos, florestas selvagens e desertos. É um país africano bem diferente dos que eu já conhecia, principalmente por ser uma região muito montanhosa e fria. De Bahir Dar, fui até as cascatas do Nilo Azul, um percurso de 32 km, mas em uma estrada muito ruim, cheia de costelas. Jemal, o motorista, me disse que era uma “massagem africana”;  o pior era a poeira, pois estava muito seco e cada carro por que passávamos levantava uma nuvem de pó que tínhamos de engolir. Pelo caminho, muita gente pela estrada, pequenos pastores com seus rebanhos de carneiros, cabritos, jegues e vacas, a maioria vestida em lenços que, um dia, devem ter sido brancos. Meninos aravam a terra com charruas pré-históricas puxadas por bois, para plantar, quando chover, a comida de subsistência. Lá, uma decepção, pois o rio estava bem seco, a deslumbrante cascata da foto não passava de um filete d’água escorrendo nas pedras. Passamos por uma ponte de pedra feita pelos portugueses, há 400 anos, e outra recém-construída pelos suíços sobre o cânion por onde passa o esquálido rio que será, no Egito, o gigantesco Nilo.

No outro dia, seguimos, por terra, de Bahir Dahr a Gondar, a cidade dos castelos, um percurso de 180 km feito em menos de três horas, pois a estrada é boa, recém-pavimentada pelos chineses. Pelo caminho, passamos por pequenas cidades repletas de gentes coloridas, muitos rebanhos e pastores pelas estradas, mulheres vendendo galos garnisés, muita gente pedindo carona, uma profusão de cores e de sons proferidos numa língua tão antiga quanto o hebreu e o árabe, o amárico, de difícil aprendizado. “Olá”, para eles é “Tenayestellegne”; “Obrigado”, “Amesegnalehu”. Muito difícil para o turista! Por isso, todos estudam inglês, na escola, e as crianças vêm conversar com os “farangi”, para treinar a língua, e, quem sabe, ganhar alguma lembrança ou comida diferente. O etíope é um povo hospitaleiro, amistoso, orgulhoso de sua cultura e nem um pouco violento. Saí de lá encantado com o povo e o país.

Cuba, Venezuela, Brasil

A primeira vez que fui a Cuba foi em janeiro de 1986, num congresso de professores. O país era dependente da URSS e, mais do que as maravilhas que apregoavam ter feito na educação, o que senti mesmo foi a falta de liberdade do povo para dizer o que pensava do regime, a falta de tudo no mercado, exceto livros na principal livraria de Havana, e o medo que a todos contaminava. Um cara de fuinha me acompanhou o tempo todo e até hoje ainda tenho pesadelo com aquele perdigueiro estalinista. Voltei a Cuba, em 1993, a URSS tinha acabado e Cuba estava à beira do caos social e econômico. A válvula de escape foi a liberação do povo e milhares de cubanos escaparam da ilha-prisão, a maioria para os EUA. Nem livros encontrei mais em Havana. “La Moderna Poesía” tinha virado uma loja fantasma, como todas as outras da cidade. O escritor Pedro Juan Gutierrez deixou memoráveis narrativas daqueles tempos de miséria, em sua “trilogia suja de Havana”, em que as pessoas vendem charutos contrabandeados e a si mesmos aos turistas. Quando saímos de lá, eu e minha esposa paramos na Venezuela e foi um alívio encontrar comida, respirar liberdade, voltar à realidade conhecida por nós. A Venezuela era o país mais parecido com o Brasil, de todos os que já tinha visitado, pelo povo, pela cultura em geral, sobretudo a comida, pela miscigenação étnica, pelas diferenças sociais, pela sedução capitalista. Voltei a Cuba, em 1997, com meu filho, a caminho da Jamaica. São dois países muito diferentes, pelos modelos políticos que têm, mas muito parecidos na miséria em que vive o povo. Um, explorado pelo capitalismo, o outro iludido pela ladainha socialista. Há de se encontrar um meio termo e essa terceira via me parece a que alcançaram os países democratas com uma legislação socializante, como a dos escandinavos, sem ditadura de qualquer tipo. A liberdade de opinião, de crença, de ir e vir, devem ser a base de todo regime democrático. O contrário é a ditadura da opinião única, da vontade soberana, da imposição de ideias, da contestação à divergência.

Volto, agora, à Venezuela, e mal consigo entrar no país. A antes bela cidade de Caracas, crescida num vale entre montanhas e que antes só perdia a beleza para as suas mulheres, sempre finalistas nos concursos de “Miss Universo”, tornou-se uma das cidades mais perigosas do mundo, totalmente favelizada, suja, decadente, dominada por marginais e por gente que vive de subsídios do governo, e não trabalha; por isso, rouba, assalta, mata. O país está politicamente dividido, como aqui, e pouco mais da metade da população legitima, nas urnas, a república bolivariana implantada por Chávez, há vinte anos, sustentada por uma intensa propaganda ideológica e uma divisão criada entre os venezuelanos entre “nós”, os que apoiam o governo” e os “outros”, os que são contra. Conversei com venezuelanos da classe média, que me contaram sobre as filas para se conseguir produtos básicos de sobrevivência, como o óleo de cozinha, o feijão, a carne, sobre a desvalorização do bolívar e sobre as milícias criadas pelo governo para se autossustentar. Em todo país, há monumentos dedicados a Chávez, dizeres como “Antes, lacaios do imperialismo; hoje, líderes do Mercosul”, fotos de Chávez com Lula e Dilma e apologias ao regime que implantaram lá. O povo venezuelano está até sem papel higiênico, produto raríssimo no país. Tão raro que o vi numa loja do free shopping de La Gayra. Corríamos o risco de o Brasil virar uma nova Cuba e Venezuela.  e de nosso verde e amarelo  ser substituído pelo vermelho bolivariano. Parece que, por enquanto, estamos salvos do pesadelo petista. Foi o que mostraram as urnas nas últimas eleições. (As fotos abaixo são de Havana, em 2015)